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sexta-feira, 11 de março de 2011

o gato no egito



Uma das mais incompreendidas características da vida egípcia é a veneração dos gatos, cujos corpos mumificados têm sido encontrados aos milhares. Minha teoria é que o gato foi o modelo da singular síntese de princípios do Egito. O gato moderno, o último animal domesticado pelo homem, descende do Felis lybica, um gato selvagem do Norte da África. Os gatos são errantes e misteriosas criaturas da noite. Crueldade e brincadeira são a mesma coisa para eles. Vivem do e para o medo, treinando assustar-se e assustar os humanos com súbitas correrias e emboscadas. Os gatos habitam o oculto, isto é, o “escondido”. Na Idade Média, eram caçados e mortos por suas ligações com as bruxas. Injusto? Mas o gato realmente está ligado à natureza ctônica*, mortal inimiga do cristianismo. O gato preto do Dia das Bruxas é a sombra que ficou da noite arcaica. Dormindo até vinte de cada 24 horas, os gatos reconstroem e habitam o primitivo mundo noturno. O gato é telepata – ou pelo menos acha que é. muitas pessoas se amedrontam com seu olhar frio. Comparados com os cães, servilmente ávidos por agradar, os gatos são autocratas de evidente interesse próprio. São ao mesmo tempo amorais e imorais, violando regras conscientemente. Seu “mau” olhar nessas horas não é nenhuma projeção humana: o gato talvez seja o único animal que saboreia o perverso ou reflete a respeito.Assim, o gato é um adepto dos mistérios ctônicos. Mas tem uma dualidade hierática. Tem olhar intensivo. O gato fundo o olho de Górgona do apetite com o distanciado olho apolíneo da contemplação. Valoriza a invisibilidade, imaginando-se comicamente indetectável quando atravessa um gramado com passo malandro. Mas também adora ver e e ser visto; é um espectador do drama da vida, divertido, condescendente. É um narcisista, sempre ajeitando a própria aparência. Quando está assanhado, seu ânimo cai. Os gatos têm um senso de composição pictórica: colocam-se simetricamente em cadeiras, tapetes, até mesmo numa folha de papel no chão. Aderem a uma métrica apolínea de espaço matemático. Altivos, solitários, precisos, são árbitros da elegância – esse princípio que considero nativamente egípcio.

Os gatos são poseurs. Têm um senso de persona – e ficam visivelmente vexados quando a realidade perfura sua dignidade. Os macacos são mais humanos, mas menos bonitos. Agachando-se, tagarelando, batendo no peito, mostrando o traseiro, os macacos são convencidos vulgares que assomam na estrada evolucionária. As sofisticadas personas dos gatos são sinais de avançada teatralidade. Sacerdote e deus de seu próprio culto, o gato segue um código de pureza ritual, limpando-se religiosamente. Faz sacrifícios pagãos a si mesmo e pode partilhar suas cerimônias com os eleitos. O dia do dono de um gato muitas vezes começa com um belo monte de entranhas ou pernas trituradas de camundongo na varanda – lembretes darwinianos. O gato é o habitante menos cristão do lar médio.

No Egito, o gato; na Grécia, o cavalo. Os gregos não ligavam para os gatos. Admiravam o cavalo e usavam-no constantemente na arte e na metáfora. O cavalo é um atleta, altivo mas serviçal. Aceita cidadania num sistema público. O gato é a lei em si. Jamais perde seu ar despótico de luxo e indolência orientais. Era feminino demais para os gregos, amantes do masculino. Falei da invenção egípcia da feminilidade, uma estética de prática social distanciada da brutal maquinaria feminina da natureza. As roupas da egípcia aristocrática, uma perfeita túnica de linho transparente pregueado, eram macias, lisas, fluidas. Macia é a sorrateiricie noturna dos gatos. Os egípcios admiravam o aspecto liso, nédio, nos mastins, chacais e gaviões. O nédio é o liso contorno apolíneo. Mas a maciez é a arte sinuosa das trevas daimônicas, que o gato traz para o dia.

Os gatos têm pensamentos secretos, uma consciência dividida. Nenhum outro animal é capaz de ambivalência, essas ambíguas correntes contraditórias de sentimentos, como quando um gato ronronante enterra ao mesmo tempo os dentes como advertência, no braço de alguém. O drama interior de um gato ocioso é telegrafado pelas orelhas, que giram para um farfalhar distante enquanto ele repousa os olhos com falsa adoração nos nossos, e depois, pela cauda, que bate ameaçadora mesmo quando ele cochila. Às vezes, o gato finge não ter qualquer relação com a própria cauda, à qual ataca esquizofrenicamente. A cauda a contorcer-se e a bater é o barômetro ctônico do mundo apolíneo do gato. é a serpente no jardim, trombando e triturando com maliciosa antecipação. A ambivalente dualidade do gato é dramatizada nas suas erráticas mudanças de humor, saltos abruptos do torpor à mania, com os quais contém nossa presunção: “Não chegue mais perto. Nunca se sabe”.

Assim, a veneração dos egípcios pelos gatos não era nem tola nem infantil. Por meio do gato, o Egito definiu e refinou sua complexa estética. O gato era o símbolo daquela fusão de ctônio e apolíneo que nenhuma outra cultura conseguiu. A linha pagã de olho intenso do Ocidente começa no Egito, como acontece com a dura persona da arte e da política. Os gatos são exemplares de ambos. O crocodilo, também cultuado no Egito, assemelha-se ao gato em sua passagem diária entre dois reinos: movendo-se entre água e terra, o rugoso crocodilo é o ego blindado do ocidente, sinistro, hostil e sempre em guarda. O gato é um viajante do tempo do antigo Egito. Retorna sempre que a feitiçaria ou o estilo estão na moda. No esteticismo decadente de Poe e Baudelaire, ele readquire seu prestígio e magnitude de esfinge. Com seu gosto pelo ritual e o espetáculo sangrento, conspiração e exibicionismo, é pura pompa pagã. Unindo primitivismo noturno a elegância de linha apolínea, tornou-se o paradigma vivo da sensibilidade egípcia. O gato, fixando sua rápida energia predatória em poses de stasis apolínea, foi o primeiro a encenar o imobilizado momento de quietude conceitual que é a grande arte.

* ctônico: relativo a ctonos a deusa terra. segundo a autora, o culto de dioniso, relativamente recente na grécia antiga, vem ocupar o lugar que antes era dedicado a essa deusa. camille paglia adota a expressão para designar o que nietzsche chama de dionisíaco.

POR: Camille Paglia

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